segunda-feira, 25 de agosto de 2014

O feio está ficando coisa...

Ilustração de Vitor TeixeiraIlustração de Vitor Teixeira

         O feio está ficando coisa, diria o personagem do conto Darandina, de João Guimarães Rosa, se abrisse os jornais das últimas semanas. Do alto de sua palmeira, para se proteger da loucura do mundo, não haveria doutor nem santo que o fizesse descer de lá. O feio ficou tão coisa que o que era adjetivo virou substantivo, se espalhou, impregnou, ganhou vida, espaço, seguidores. Coisificou. De repente aquilo que tínhamos vergonha de confessar em público viralizou. Ganhou ressonância. E qualquer um, do alto da própria palmeira, pode espalhar insanidades a plateias não menos desorientadas.

       É o que se pode concluir quando percebemos que aquele tio de visão, digamos, pouco sofisticada do mundo (o mesmo que repete bordões sobre segurança pública e delinquência política entre pegadinhas do tipo “é pavê ou pra comer?”) deixou a sala de jantar e invadiu as caixas de comentários dos portais, as colunas de opinião, as decisões judiciais e as impolutas consultorias econômicas em tempos de eleição.

    A linguagem de pobreza relinchante migrou do ambiente privado, onde guardávamos nossas vergonhas, e pousou no debate público.

     Tome-se o exemplo do estudante e ativista Fábio Harano, preso durante 43 dias sob o argumento de que se tratava de um representante da “esquerda caviar”. Graças à decisão, referendada por um slogan publicitóide criado por quem faz troça sobre vítimas de tortura, ameaça de morte e estupro, Harano foi detido no Deic, o departamento de investigações criminais da Polícia Civil de São Paulo, e no presídio de Tremembé (SP) sem qualquer prova contra ele (quantos, como ele, estariam na mesma situação naquelas celas?).

    Dias atrás, uma nota do banco Santander aos seus clientes VIPs, prevendo o caos em caso de reeleição da presidenta Dilma Rousseff, apontou a primeira faísca da bagunça entre alhos e bugalhos. Mas o feio e a coisa ganharam dimensão temerosa mesmo quando clientes de uma consultoria receberam, dias atrás, um arroto em forma de análise sobre a eleição. No relatório, os clientes ficavam sabendo que Dilma “está plantada (oi?) numa sólida diferença (oi?) para os demais candidatos que, se não é confortável (oi?), é desencorajante (oi?)”. Se tem uma coisa que tio preconceituoso, comentaristas raivosos, colunistas paranoicos, juízes mal embasados e consultores assustados têm em comum é a incapacidade de apontar lógica no próprio raciocínio.

     Parece que apenas não sabem escrever, mas não é só, como aponta este trecho da nota assinada pelos economistas da consultoria: “O cenário mais provável é a continuidade da mediocridade, do descompromisso com a Lógica, do mau humor prepotente do poste que se transformou em porrete contra o senso comum (oi?)”.

    A nota, engolida pelo noticiário em meio à comoção com a morte de Eduardo Campos, foi produzida pela consultoria econômica Rosenberg Associados, cujo dono é Luís Paulo Rosenberg, assessor econômico do governo Sarney, o mesmo presidente que entregou o mandato em 1990 com a inflação a 1.764,86%. Seria como se, 24 anos após o fiasco da Copa de 90, algum auxiliar do técnico Sebastião Lazaroni ensinasse os futuros treinadores e interessados no esporte a escapar do conceito de mediocridade.

     A fórmula é fácil e eficiente: basta criar um demônio, sobre o qual ninguém sabe a definição exata (desafie alguém a explicar o bolivarianismo em 140 caracteres e espere aquecer) e falar em “caos”. Não é preciso saber escrever ou ligar os pontos entre os demônios (em tempo, não seria menos constrangedor se o juiz determinasse a prisão de alguém por considera-lo “reacionário” ou se a economista-chefe da consultoria trocasse a palavra “poste” por “picolé de chuchu”. É chulo, além de covarde, do mesmo jeito).

     Nas conversas em família, ficamos com vergonha pelo tio desinformado e falamos de futebol para driblar o constrangimento. Mas quando o relincho vira análise de conjuntura (ou jornalismo barato ou decisão judicial), a coisa e o feio mudam de figura: é quando voltamos ao conto de Guimarães Rosa, cujo personagem, para se salvar do estado de loucura da humanidade, sobe em uma palmeira e, de lá, começa a proferir obviedades e frases aleatórias, entre elas a de que “cão que ladra não é mudo”. O feio fica coisa de vez quando, embaixo da palmeira, a multidão se empolga e aplaude a insanidade. Ou paga pelo show.

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